​Impactos psicológicos da pandemia atingem mais pessoas que infecção por covid-19

Pesquisadores afirmam ainda que os danos à saúde mental podem durar mais que as consequências físicas provocadas pela doença

“Nunca passou pela minha cabeça que eu poderia estar infectado, até mesmo porque estava tomando todos os cuidados necessários. Lidei muito bem com o resultado, mas, inevitavelmente, muitas coisas passam pela cabeça. É como se você realmente se desse conta do quão grave é e as notícias que aparecem nos jornais preocupam pois você não quer fazer parte do número de vítimas”.

Apesar das amígdalas inchadas, Matheus não sentia dor e por isso não imaginou que testaria positivo para a covid-19 (Matheus Vasconcelos)

Ter contraído a covid-19 não é o único fator que torna o psicólogo Matheus Vasconcelos, 26, comum a várias pessoas ao redor do mundo. Sua fala releva um problema silencioso que tem atingido um número cada vez maior de indivíduos, mesmo aqueles ainda não infectados pelo novo coronavírus: o sofrimento psicológico.

“Minha preocupação passou a ser não contaminar familiares em casa, você deve ter a consciência de que pode contaminá-las. Estamos esperando os profissionais da saúde virem verificar se sou o único ou se alguém já estava contaminado e me passou. Estou em um quarto separado, isolado de todos aqui”, Matheus explica.

Estudos sobre os impactos na saúde mental causados pela pandemia têm sido lançados em vários países e alguns buscam respostas em observações feitas durante outros surtos virais, como de ebola, em 1995, e da síndrome respiratória aguda grave (SARS), outro tipo de coronavírus, em 2003. Apoiada nessas pesquisas, a psicologia brasileira busca compreender como algumas parcelas da população são afetadas e encontrar medidas de prevenção e tratamento.

Diminuição das conexões face a face, mudanças na rotina, noção da perda de vidas em massa,  dúvidas sobre várias questões relacionadas ao vírus e ser pertencente a grupos discriminados – como os chineses, em razão do surgimento da doença na China, e os idosos, por representarem o maior número de óbitos – são algumas das causas diagnosticadas na população em geral para os distúrbios psicológicos. Somam-se ainda a avalanche de notícias falsas e alarmantes que geram pânico, desinformação e a recusa de muitos a assimilarem e adotarem as recomendações das autoridades sanitárias.

No início da pandemia na China, uma pesquisa feita com 1.210 entrevistados em 194 cidades revelou índices de ansiedade (28,8%), depressão (16,2%) e estresse (8,1%), além do medo de que familiares contraíssem a doença (75,2%). 53,8% demonstraram sofrer com algum impacto psicológico, de intensidade moderada a severa. Outros estudos apontam ainda mudanças no apetite, problemas com consumo de drogas lícitas e ilícitas, irritabilidade, angústia, confusão, solidão, sentimento de impotência e desamparo e medo de perder a própria vida, sofrer desestabilização financeira e escassez de alimentos.

Pessoas com coronavírus podem criar o hábito compulsivo de aferir a temperatura corporal ou interpretar sensações físicas de maneira equivocada. Em estados mais críticos, pacientes podem sofrer ansiedade pela dificuldade em respirar e pelo medo de morrerem isolados. Mulheres, crianças e adolescentes confinados em casa tornam-se mais vulneráveis a agressores e impossibilitados de fazer denúncias, o que reflete nos agravamentos no número de casos de violência doméstica registrados em vários países como China, México, Argentina, Bolívia, Itália e Brasil.

No topo da lista de recomendações para minimizar alguns desses impactos, estão o contato com amigos e familiares – que deve ser mantido on-line ou via telefone – e ainda o consumo de alimentos saudáveis, cuidados com o sono, a organização de uma rotina de atividades e a prática de exercícios físicos e de técnicas de relaxamento. Estudos mostram que ter informações precisas sobre a situação local de contágio, formas de prevenção e tratamento estão ligados a menores níveis de ansiedade, depressão e estresse.

No mesmo sentido, é válido consumir menos notícias e checar a veracidade do que encontramos em canais não oficiais, redes sociais e WhatsApp. Órgãos oficiais podem lançar materiais informativos em cartilhas, áudios e vídeos de maneira clara e acessível. A disponibilização de canais de escuta psicológica via telefone e on-line, 24 horas por dia e 7 dias por semana, já é uma alternativa oferecida gratuitamente em vários lugares do país.

​Na linha de frente

Profissionais da área da saúde podem ter preparo psicológico adequado para lidar com quadros de grande estresse, mas a prática em situações emergenciais de grande porte não é comum no Brasil. Na pandemia, além do acúmulo de trabalho, enfermeiros e médicos enfrentam exposição a mortes em larga escala, distanciamento extensivo da família e amigos, alterações frequentes em protocolos e sobrecarga no manuseio de trajes e equipamentos. É frequente haver dificuldades com pacientes que, em situações de irritabilidade e desespero, se recusam a seguir recomendações e tratamentos, quando não ameaçam e agridem colaboradores nos hospitais.

(PDPics/Pixabay)

O risco de serem infectados também faz parte do cotidiano, sobretudo quando há escassez de recursos de proteção: entre 1º de março e 1º de junho, segundo o Ministério da Saúde, 169 profissionais morreram pela covid-19 no Brasil, sendo 42 enfermeiros e 18 médicos – entre outras ocupações – e mais de 80 mil infectados no total. O resultado se traduz em medo de infectar outras pessoas, sentimento de incapacidade diante de casos graves e até recusa a momentos de descanso. Em pesquisa feita com 1.563 médicos na China, houve diagnósticos de estresse (73,4%), depressão (50,7%), ansiedade (44,7%) e insônia (36,1).

Segundo pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande e Universidade Federal de Santa Catarina, o acompanhamento psicológico dos agentes da saúde pode ajudar na compreensão dos impactos previstos em emergências de grande porte, no gerenciamento do estresse, na valorização do descanso e do contato com a rede socioafetiva – via telefone e internet – e ainda em direcionamentos sobre como ouvir, orientar e acalmar vítimas da covid-19 e seus familiares: enfermeiros e médicos são muitas vezes os responsáveis por esse comunicação nos hospitais.

​Psicoterapia on-line

O Conselho Federal de Psicologia, no último 26 de março, publicou uma atualização para a regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de tecnologia da informação e da comunicação para o período da pandemia. Na prática, o profissional deve realizar o “Cadastro e-Psi”, sem que precise aguardar aprovação do CFP, e já pode oferecer o atendimento psicológico on-line, inclusive em casos de urgência, emergência, desastre e de violação de direitos ou violência. A decisão vai na mesma direção de recomendações feitas em estudos internacionais e nacionais, como de pesquisadores da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Federal da Bahia, quanto à importância de desenvolver estratégias de suporte psicológico para promover a saúde mental, aliando tecnologias on-line e o distanciamento físico.

Laura Rinaldi é psicóloga e aderiu às ferramentas de interação em rede para atender seus pacientes. Segunda ela, o tema nas sessões tem girado em torno do isolamento: “A pandemia agravou sintomas que já existiam, como uma lupa. Está tudo muito à flor da pele e muito visível, as pessoas estão tendo muito tempo para pensar. Sua ansiedade aumenta, seu estresse aumenta”, afirma. A combinação dessas disfunções pode resultar em outros sintomas, como dificuldades para dormir. “A psicoterapia, além de ser um contato humano, é um contato com você mesmo, para não se perder com seus pensamentos, angústias e sentimentos. Precisamos refletir sobre o que está se passando”, reforça a psicóloga.

Preconceitos e excesso de informações sobre saúde mental nos meios de comunicação são barreiras para a psicoterapia, explica Laura Rinaldi

A pandemia tem causado efeitos no dia-a-dia do operador de crédito Gean Dyonisio, 24, mas o momento também tem sido importante para refletir sobre si mesmo: “Houve assuntos que pude descobrir e aspectos que eu percebia que precisava explorar em mim”, conta.

Gean faz psicoterapia há um ano e meio e atualmente aderiu aos encontros à distância. Ele revela que sente falta do ambiente da clínica, pois o contato olho a olho deixa a sessão mais leve e descontraída: “Mesmo sendo um ambiente on-line em que não tenha tanto contato com minha terapeuta, tem me ajudado bastante. Mas por mais que eu esteja na minha casa, num ambiente mais seguro, sinto que não tenho tanta liberdade e privacidade quanto presencialmente, na sala de um psicólogo”, aponta.

Gean decidiu manter as sessões com sua terapeuta, agora via WhatsApp

Laura Rinaldi observa que alguns de seus pacientes também têm dificuldade em encontrar lugares com privacidade e momentos em que não haja barulho, o que é mais difícil com famílias inteiras passando a maior parte do dia dentro de casa: “Na terapia presencial, temos um ambiente totalmente seguro, sabemos que não tem ninguém atrás da porta e que somos ouvidos por completo, sem falha na comunicação”, diz Laura.

​Luto na pandemia

Os últimos instantes de vida, a morte e o luto constituem processos complexos e essenciais da sociedade. Um estudo publicado na revista Estudos de Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, aponta a importância da “elaboração de sentido para as perdas” e analisa os obstáculos e impactos surgidos diante da necessidade de isolamento. Há famílias que perdem vários integrantes, passando por lutos sequenciais. Pode não haver a oportunidade de relembrar momentos, resolver conflitos e pedir perdão.

Caixões são lacrados antes dos corpos serem entregues a familiares, limitando a realização de funerais adequados de acordo com os costumes e demandas espirituais do indivíduo. Recentemente, em Roraima, dois bebês indígenas Yanomami, vítimas da covid-19, foram enterrados sem autorização das mães, que agora desesperadas tentam recuperar os filhos para cumprir o ritual tradicional.

Segundo os pesquisadores da PUC-Campinas, as mortes de crianças, jovens e de pessoas com grande responsabilidade na família podem gerar traumas mais profundos. O semelhante pode ocorrer a crianças encaminhadas a abrigos após a morte dos pais, e a adultos com transtorno mental severo que perdem seus pais idosos e cuidadores. Em alguns casos, ocorre o que a psicologia chama de luto complicado: o sofrimento de perda é intensificado, sem perspectiva de melhora a longo prazo, prejudicando a vida do enlutado.

O envio de cartas, objetos importantes, além de áudios, fotos e vídeos por dispositivos eletrônicos tem sido adotado como ponte comunicacional entre quem está prestes a partir e quem fica – com o devido intermédio dos profissionais da saúde nos hospitais. A tecnologia é alternativa ainda para despedidas, seja em funerais gravados e transmitidos posteriormente ou ao vivo, ou em memoriais, missas e cultos online. Vale lembrar que muitos brasileiros não têm acesso à internet e que a maior parte das vítimas fatais do novo coronavírus é idosa e pode ter dificuldades em manejar aparelhos eletrônicos: em alguns casos, ligações telefônicas podem ajudar na aproximação de afetos.

Cuidado e prevenção

(Cottonbro/Pexels)

A preocupação contínua com o bem-estar psicológico pode ajudar na prevenção de desordens emocionais e doenças físicas somatizadas por sintomas como estresse e ansiedade, explica Laura Rinaldi. “É uma parte importante que temos que cuidar e não é levada muito a sério. As pessoas buscam a terapia quando os sintomas estão muito fortes e causando grande sofrimento e prejuízo no dia-a-dia”. Em momentos críticos e traumáticos como o que o mundo passa atualmente, cuidar da saúde mental tende a minimizar repercussões negativas e a auxiliar em readaptações, transformações e perdas.

O novo coronavírus já atingiu mais de 16,6 milhões de pessoas em todo o mundo e levou à morte quase 660 mil. Só no Brasil, são 2,4 milhões de infectados e mais de 88 mil vidas interrompidas. Pesquisadores da Escola Superior de Ciências da Saúde, em Brasília/DF, apontam, no entanto, que há mais indivíduos com consequências na saúde mental do que afetadas pela própria infecção. Acadêmicos da UFRG e UFSC acrescentam que os efeitos psicológicos decorrentes da pandemia podem durar mais que as consequências físicas de quem contrai o vírus.

Segundo Laura Rinaldi, há um sentimento de tensão universal, muitos tentam ignorar se afundando no trabalho ou nos estudos, mas sabemos o que está acontecendo e o quão grave é. “Os sonhos são a grande prova disso, pesadelos com perseguições, mortes… estamos produzindo material inconsciente sem necessariamente estar buscando essas informações. Estamos sendo influenciados mesmo sem perceber”, finaliza.

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