A Cinemateca Brasileira: do clube de cinema à crise financeira

Conheça a principal instituição responsável pela memória do cinema no Brasil. E o que pode significar o seu fechamento

Por Natália Santos

A Cinemateca Brasileira voltou aos holofotes da mídia no dia 20 de maio de 2020 quando, ao afastar a atriz Regina Duarte do cargo da Secretaria Especial da Cultura, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou que a atriz seria a nova responsável pela Cinemateca.

A Cinemateca Brasileira é a instituição responsável pela preservação, restauração e difusão da produção audiovisual brasileira. Dona do maior acervo da América Latina, possui por cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotos, roteiros, cartazes e livros, entre outros. Sua sede localiza-se na Vila Clementino, na Zona Sul da cidade de São Paulo.

Atualmente, a Cinemateca é um órgão ligado à Secretaria da Cultura que responsável por assessorar o Ministério do Turismo na formação de políticas, programas e projetos de promoção da cidadania por meio da cultura.

O início de um sonho 

Datada no ano de 1940, a Cinemateca tem sua origem quando Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado, Antonio Candido de Mello e Souza, – todos estudantes da USP – fundam o Primeiro Clube de Cinema de São Paulo. Entretanto, logo no ano seguinte, o Primeiro Clube é fechado pelos órgãos de repressão da ditadura do Estado Novo.

Segundo o professor e autor do livro “A Cinemateca Brasileira: das luzes aos anos de chumbo”, Fausto Douglas Correa Jr., a ideia de criação da instituição foi um “projeto revolucionário no campo da educação”, uma vez que Paulo Emílio, ao entender o cinema como meio de ampliação de consciência política e cultural, conseguiu realizar uma síntese sobre o debate internacional de formatos de cinemateca e criar uma versão que preservasse a memória do audiovisual e ainda promovesse a difusão dos conhecimentos. 

Seis anos depois, em 1946, há uma segunda tentativa. Cria-se, então, o Segundo Clube de Cinema de São Paulo. Agora, guiado por novos membros, o grupo continua a estimular o estudo, a defesa, a divulgação e o desenvolvimento da arte cinematográfica no Brasil. 

A partir desse segundo momento, o Segundo Clube passa a ganhar mais robustez e destaque dentro da cidade. Em 1949, o clube, juntamente com o Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP, criam a Filmoteca do museu. Depois de sete anos, a Filmoteca desassociasse do Museu de Arte Moderna e transforma-se no que hoje conhecemos como Cinemateca Brasileira, uma sociedade civil sem fins lucrativos. 

Ao tornar-se fundação, a Cinemateca Brasileira passa a ser vista como uma personalidade jurídica, permitindo convênios com o poder público estatal e com outras organizações como a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), cuja finalidade de existência é oferecer apoio financeiro e cultural ao trabalho do entidade.

Durante sua história, a Cinemateca foi incorporada ao poder público duas vezes: em 1984, quando a Fundação Cinemateca Brasileira é extinta e passa a ser órgão autônomo da Fundação Nacional Pró-Memória; e em 2003, quando a  Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura incorpora a Cinemateca Brasileira, modelo mais semelhante com a situação de hoje. 

Sendo parte do órgão público federal, a Cinemateca passou a sofrer oscilações a depender dos ideais do governo vigente. De 2008 a 2013, por exemplo, no próprio site da instituição, é mencionado que houve um “grande impulso nas suas atividades de preservação e difusão de acervos, bem como na infraestrutura, graças a recursos investidos pelo antigo Ministério da Cultura, em parceria com a Sociedade Amigos da Cinemateca”. 

Em 2018, a Cinemateca Brasileira tornou-se a primeira instituição cultural federal administrada por uma Organização Social. Por meio de um contrato de Gestão feito em parceria entre o antigo Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, o órgão cultural passou a ser administrado integralmente pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp). A validade do contrato era de 3 anos.

Linha do tempo dos acontecimentos de maior relevância na história da Cinemateca Brasileira – Infográfico por: Natália Santos

Os incêndios e as perdas

A história da Cinemateca Brasileira é marcada por quatro incêndios ao longo dos anos que se convergem em uma mesma causa: a autocombustão em suporte de nitrato de celulose. Esse material, altamente inflamável, ainda é utilizado para armazenar longa-metragens devido a sua propriedade de elasticidade, podendo produzir longas tiras que correspondem às películas de filmes como os rolos antigos de cinema; e também para preservar o suporte original do filme após a cópia.

Os dois primeiros incêndios marcaram as dificuldades iniciais do trabalho na Cinemateca. O primeiro, datado em 1957, destruiu as instalações da organização na Rua Sete de Abril e quase todo seu acervo na época. Em 1969, o segundo incêndio acontece. Agora, já localizada no parque Ibirapuera, há a perda de 2 mil filmes do acervo.

O terceiro momento foi treze anos depois, em 1982. Com a perda de 1500 fitas, esse incêndio agrava as dificuldades financeiras da instituição, levando a defesa de sua primeira incorporação ao poder público em 1984. No total, há a perda de 1.500 fitas.

O último e quarto incêndio foi em 2016 e atingiu um dos quatro depósitos (Câmara 03) de armazenamento de filmes em suporte de nitrato de celulose. Na época, a Cinemateca estava sob responsabilidade da Secretaria de Audiovisual que em nota oficial informou que houve perda de 731 títulos e 1003 rolos (sendo 396 sem cópia).

Depois de quatro anos, em carta aberta denominada “Cinemateca Brasileira pede socorro”,  a mais antiga instituição de cinema do país afirma que o incêndio de 2016 foi acarretado pelo descaso da Secretaria do Audiovisual. O documento ainda completa que as perdas foram um fato “relegado pelas autoridades que não tomaram nenhuma providência de reparação ou de prevenção de novos acidentes”.

Fachada da Cinemateca Brasileira – Foto: Vivian Reis/ G1

Em fevereiro deste ano, a Cinemateca sofreu com mais um incidente. Dessa vez, uma enchente no galpão na Vila Leopoldina. Ao todo, cerca de 114 mil DVDs da Programadora Brasil, coleção criada para difundir o cinema brasileiro em escolas e cineclubes, foram danificados.

a crise da instituição

Durante sua história, a entidade cultural passou por quatro grandes incêndios e uma enchente, perdendo parte do seu patrimônio; e vive uma grande crise financeira que se arrasta por anos.

Desde o dia 13 de maio de 2020, a Cinemateca Brasileira está sem um contrato de gestão devido a uma ação do Ministério da Educação que decidiu encerrar, em dezembro do ano anterior, o contrato com a Acerp, na época, também responsável pela gestão da TV Escola. O ato promovido pelo ex-ministro Abraham Weintraub provocou um colapso financeiro na instituição. 

Segundo carta aberta divulgada no dia 15 de maio deste ano, a Cinemateca afirma que ainda não tinha recebido nenhuma parcela do orçamento anual, cuja responsabilidade era do Governo Federal em transferir para a Acerp. O montante é no valor de R$ 12 milhões.

O documento ainda esclarece que “se o orçamento da Cinemateca não for imediatamente repassado à Acerp, assegurando a manutenção do quadro mínimo de contratados e as condições físicas de conservação, não haverá necessidade de uma perspectiva de fôlego, pois já teremos alcançado a solução final.”

Rumores circularam no ambiente cultural de que o Governo Federal teria intenções de fechar a Cinemateca.

Para o professor Fausto Jr., um possível fechamento da instituição pode significar “a valorização de uma economia privada de caráter exclusivo em detrimento de uma cultura pública que inclui”, uma vez que todo o processo de preservação da memória brasileira e socialização da nossa riqueza cultural seria colocada em xeque por ideias políticas que desvalorizam e temem a história brasileira. Além disso, com um fechamento, cerca de 150 funcionários ficariam sem seus empregos. 

Com o intuito de barrar a propagação do boato, no final de maio, o ministério do Turismo informou em nota ao jornal Estado de S. Paulo que Cinemateca não será fechada. A proposta do governo é que a instituição entre “na fase natural de reincorporação pela União, uma vez que não existe respaldo contratual para a Organização Social (Acerp) permanecer”. 

A versão dos funcionários

O impasse da Acerp com o Governo Federal impactou diretamente a qualidade de trabalho dos funcionários da Cinemateca. Sem receber seus salários desde abril, os contratados optaram por articular entre si e criar uma campanha pública para a arrecadação de doações com o intuito de amenizar a situação financeira de 62 membros até uma decisão do poder público e da Organização Social responsável pela gestão da instituição. 

No dia 03 de junho, a campanha denominada “Cinemateca Brasileira – Trabalhadores em Emergência” foi lançada juntamente com uma carta que conta uma outra versão dos eventos ocorridos até agora. Segundo o documento, os funcionários da Cinemateca não receberam qualquer comunicação da Acerp a respeito da situação financeira da instituição cultural, afirmando uma falta de transparência da Organização Social para com seus colaboradores. 

Os funcionários da Cinemateca ainda afirmam que a atual situação da entidade cultural “é fruto de uma política do Estado para terceirizar e privatizar os serviços públicos, postura de longa data de autoridades públicas que, cada vez mais, não se responsabilizam pela administração de seus órgãos, uma prática aberta a administrações nada transparentes, com interferências políticas duvidosas para atender interesses de ocasião”.

O movimento Cinemateca Acesa, composto por 40 entidades do cinema, dentro e fora do Brasil, divulgou vídeo em que artistas de grande nome pedem apoio à campanha dos funcionários da entidade cultural. 

O que pode vir por aí

Em partes, a situação da Cinemateca Brasileira começa a ser decidida. Por agora, a entidade cultural está sob responsabilidade do Ministério do Turismo. Com o intuito de reafirmar esse compromisso, no final de junho, o ministro Marcelo Álvaro Antônio acompanhado do atual secretário Especial da Cultura, Mário Frias, visitaram as instalações da instituição cinematográfica. 

Em nota divulgada pela Agência de Notícias de Turismo, a visita também tinha como objetivo discutir juntamente com membros da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) as possibilidades para a solução dos impasses da Cinemateca. 

No dia seguinte à visita, os trabalhadores da Cinemateca posicionaram-se em rede social informando que não foram comunicados do encontro entre a diretoria da Acerp e os representantes do Governo Federal. Em publicação, eles complementam que, mais uma vez, não receberam “qualquer resposta da diretoria da Acerp quanto ao resultado final desse encontro”. 

O imbróglio da Cinemateca Brasileira chamou atenção também de outro nível governamental: o municipal. O prefeito Bruno Covas (PSDB) chegou a informar o general Luiz Eduardo Ramos, em conversa telefônica, sobre o interesse da prefeitura de São Paulo em assumir a gestão da Cinemateca. A ideia surgiu após proposta do vereador Xexéu Tripoli (PSDB).

Até o fechamento desta reportagem, a Cinemateca Brasileira não havia respondido às questões enviadas por e-mail. 

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