A política brasileira durante pandemias

102 após a crise da gripe espanhola no Brasil, nossa política enfrenta mais um adversário desconhecido

Por Maria Carolina Gonzalez

Durante a atual pandemia do novo coronavírus, a cada dia fica mais evidente que a crise no Brasil não é apenas na área da saúde. O descaso e o desentendimento entre governos federal e estaduais contribui, direta e indiretamente, para o aumento do número de casos e vítimas. Não é a primeira vez que o país se vê diante de uma doença até então desconhecida. Há mais de cem anos, a gripe espanhola causou pânico por aqui, levando aproximadamente 35 mil pessoas à óbito. Essa doença ensinou de que forma os governos devem – ou deveriam – proceder durante uma pandemia, como a que está ocorrendo atualmente.

Setembro a novembro de 1918: descrédito na doença, um diretor de Saúde Pública exonerado, um presidente morto e mais de 35 mil vítimas da gripe espanhola no Brasil (Foto: Reprodução/Gazeta do Povo)

“Gripezinha”

Quando chegou em solo brasileiro em setembro de 1918, a gripe espanhola foi espalhando-se rapidamente por grandes cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Mesmo assim, a doença foi menosprezada logo no início do surto por aqui. Charges de jornais da época retratavam a gripe espanhola com deboche, dando apelidos como “a espanhola” e “catarro russo”. A historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz (COC), unidade da Fiocruz, revela que até o diretor geral de Saúde Pública da época, Dr. Carlos Seidl, (posteriormente exonerado do cargo), acreditava se tratar de uma gripe comum. Quando o número de vítimas começou a crescer drasticamente, a gripe deixou de ser chacota. 

O mesmo erro se repetiu no Brasil com o novo coronavírus. Após a confirmação do primeiro caso, muitos acreditaram que era uma situação isolada e até o próprio governo federal subestimou a gravidade do vírus. Dilene aponta que uma das lições deixadas pela gripe espanhola é que não se deve menosprezar a evolução dramática de uma doença desconhecida com alta velocidade de transmissão, principalmente quando não há medicamentos para seu combate. Até o fechamento desta matéria, pouco mais de três meses após a primeira morte pela covid-19, o Brasil conta com quase 60 mil óbitos e mais de 1 milhão de casos confirmados, segundo dados do Ministério da Saúde, sendo o segundo país com maior número de infectados no mundo, ficando atrás somente dos Estados Unidos.

A desinformação se espalhou tão rápido quanto a gripe espanhola e a própria imprensa da época deu espaço para isso (Foto: Reprodução/A Gazeta de Notícias)

Dilene Nascimento conta ainda que parte das medidas adotadas para o combate da gripe espanhola, como fechamento do comércio, não foram aplicadas somente como políticas sanitárias, mas sim por causa da redução de pessoas que adoeceram. As medidas conhecidas como “Conselhos ao Povo”, publicada pela Inspetoria de Higiene de São Paulo, recomendava evitar aglomerações e visitas e também tomar cuidados higiênicos com nariz e garganta. Mais de 100 anos após o surto da gripe, as medidas preventivas são praticamente as mesmas, no entanto, os cuidados básicos de higiene não estão na realidade de parte da população brasileira. 

Água e sabão 

Maximiliano Martin Vicente, professor de Realidade Sócio-Econômica e Política Brasileira Contemporânea na Unesp, aponta que políticas públicas devem combater as carências de infraestrutura e a situação social dos setores mais vulneráveis. Medidas preventivas simples contra o coronavírus, como lavar as mãos e evitar aglomerações, não abrangem a grande parcela da população que não recebe água limpa e conta apenas com transporte público lotado. Momentos como o da pandemia deixam evidente o abismo social no Brasil e como a falta dessas políticas é fatal para os brasileiros que dependem totalmente delas. 

A população carente está mais vulnerável a doenças contagiosas, assim como ocorreu durante a gripe espanhola e ainda ocorre durante a pandemia da covid-19 (Foto: Reprodução)

A gripe espanhola atingiu o Brasil em uma época em que a criação do Ministério da Saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS) ainda estavam longe de acontecer. Parte da ajuda chegava de instituições como a Fiocruz, dirigida na época pelo Dr. Carlos Chagas, que implantou cinco hospitais de emergência e 27 pontos de atendimento no Rio de Janeiro. Mesmo após mudanças nas políticas de atendimento à população, Maximiliano ressalta que o despreparo da saúde pública para atender a população ainda é marcante. O professor acredita que uma das possíveis consequências políticas e socioculturais da crise do novo coronavírus será o resgate das finalidades e prioridades do papel do Estado.

Apesar das muitas semelhanças entre a crise da gripe espanhola e a do coronavírus, é importe ressaltar que nenhuma pandemia é igual a outra. O cenário atual ainda é incerto, mas as experiências anteriores deixaram lições valiosas. Cobrar governos por políticas públicas sempre foi essencial, mas agora mostra que é uma questão de sobrevivência.

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